O recomendado pelo pedreiro que faz a
manutenção dessas coisas no edifício é mudança no banho. A hidromassagem vaza e
o apartamento logo abaixo recebe infiltração em forma de uma enorme mancha
escura por todo o teto. Será necessária a total remoção da banheira para se
consertar o que fez a água escoar para onde não deveria.
Mas ela não tem dinheiro. A
aposentadoria precoce, devido a um problema
sério de saúde, não lhe garantiu receber quantia justa, e no meio de tanta
perturbação na hora dos acordos para que esses trâmites fossem encerrados de
uma vez por todas, ela achou por bem não reclamar de nada e se contentar com o
estabelecido.
A reforma está fora de alcance. E isso
muda não apenas os banhos, mas a sua principal atividade. Há exatos nove meses,
a chama de ser um bicho social se apagou dentro dela, e desse modo lá se foi a
vontade de ser vista ou necessária. Viver o silêncio em um mundo observado
apenas pela janela ficou sendo a melhor opção. E ela encarou como trabalho, fez
isso para sentir-se dona de um projeto de vida, coisa que justificaria a
reclusão e a pouparia, sobretudo, de questionar o medo dos novos estímulos.
Pensou nos artistas que escolhiam o isolamento como condição primeira para chegar
em realização e dignidade. E ela era digna com toda a quietude, não ajudava em
nada, mas não fazia mal a ninguém, não incomodava e nem divergia. Como isso era
bem vindo. Estar no mundo da forma mais delicada, não pertencer a ele
ostensivamente, querendo coisas, engendrando mudanças. Nunca mais, nada disso.
Ela só queria dar paz e receber indiferença, aquela que nunca a cobraria de ter
um pouco mais ou de parecer adequada. Estava, inclusive, ficando antiga, as
roupas tratadas com carinho para que demorassem a envelhecer ficando
inevitavelmente fora de moda. Mas não ligar era parte importante do
desprendimento.
E foi quando assumiu a nova condição,
a não dependência de aprovação, que resolveu ter um luxo e saber chamar a isso
de prazer. Mandou instalar o pocinho com jatinhos de água provedores do
relaxamento e então a brincadeira da vida ainda não havia acabado de todo. Duas
vezes ao dia se despia e entrava no particular recanto de não dar satisfações a
ninguém. Os momentos na água seriam as
sagradas horas de desfrutar ser ela mesma sem aqueles receios habituais, como
quando pensava em ir à rua fazer compras. Com isso gastava também menos
dinheiro, porque encontrou um divertimento ali no lugar mais escondido da casa,
o banheiro bolha de indiscutível confiabilidade, onde nada escoava da pouca
renda, nada era cobrado de seu tempo de fazer só o que quisesse.
No fim da tarde, quando já começava a
escurecer dentro da sala de banho e esconderijo, a água parecia mais
interessante. A hidromassagem era desligada e o silêncio só se quebrava com
pequenos pingos, gotas diminutas, frágeis como ela mesma se via. E aí então não
estava mais só em seu pequeno estar, cuidando para ocupar espaço de maneira
miúda.
Mas a paz aquática estava agora
ameaçada. O pedreiro dizendo que essa e aquela torneira não deveriam ser
abertas jamais. E quando o homem saiu do apartamento ela se viu com o problema:
o que será de meus momentos? Transitou entre os quartos e a sala por horas,
refazendo contas mentalmente, até ter certeza de que as finanças não comportavam
o que lhe estava sendo proposto. Teria de voltar aos banhos comuns, sem os
jatinhos e bolhinhas com sons de natureza. Tudo bem, repetia, e chegou a dizer
em voz alta, no tom de resignação completa.
No chá das três, pensou que seria o
momento de submergir. Lembrou que vez ou outra até levava a xícara para a
banheira. E lá ficava, beneficiando-se dos aromas misturados, água pura,
límpida, e o chá. Erva cidreira, doce, camomila, tudo sempre calmante. Mas
agora não mais a imersão, não mais o outro mundo onde os medos se molham e
dissolvem escorrendo no vapor do azulejo. Bom mesmo era estar envolta no
líquido quente, a água na pele que nem carinho mais espera.
Os azulejos estampados de verde musgo
com pinceladas de rosa pálido são muito reconfortantes. Folhagens sobem pelas
paredes com singelas florzinhas que dizem muito do novo estilo discreto, e do
tipo que, mal se viu, já se esvai. São flores nubladas e derretidas, cores que
nunca agridem.
E então o chá fica diferente no dia da
notícia. A grande distração, afinal chamada de prazer, havia sido vetada.
Restava a televisão, e era só acioná-la. Mas nada daquela chuva de cores e sons
desordenados, o mau gosto das vozes como se a vida fosse só festa lhe agradava
mais. Repelia tudo o que se parecesse com aquilo. Livros? Já havia
experimentado mais de uma vez todos os da estante. Ginástica, talvez, mas o
corpo pedia a calma dos iogues, vivida alegremente na cápsula de mergulhar.
Tudo teria ido pelo ralo, tudo lhe teria sido negado por causa da mancha no
banheiro alheio. Nenhum sentido.
De repente achou de grande brutalidade
essa nova condição. A mulher quieta ali, pouco parou nesse tempo todo até para imaginar
que existia gente no andar abaixo. A aquisição da banheira era um ato lavrado
de que agora ela se bastava, tanto que a mini natureza estava garantida para não
precisar atravessar o caminho de mais ninguém. Assim, a razão do acontecimento lhe
escapava com gravidade. E aos poucos foi se tornando inconformada.
No dia seguinte se conteve triste nas
horas do tradicional descanso. Olhou as paredes da cozinha e leu o folheto de
ofertas deixado na soleira da porta. Nem o chá tinha muito sabor, em tudo
faltava aquela energia que ainda a fazia pensar em ser alguém. Dessa forma, sem
objetivo de agrado nos dias, ela passava a se parecer cada vez mais com as
flores desbotadas nas folhagens subindo pelas paredes. E visitava com
frequência seu espaço sagrado, acariciava o ladrilho onde pousava a xícara
habitualmente, vendo tudo com desgosto.
As contas eram refeitas de tempos em
tempos, números no caderno fazendo o mesmo percurso, mas nada de novidades. A
falta de folga nas finanças ainda não tinha lhe surpreendido como dessa vez. O
comedimento era encarado sem desconforto, porque precisava cada vez menos de
requintes ou mimos. Estava vivendo fase de grande satisfação e podia se dizer
abastada na medida em que não esbarrava em controvérsias, e por controvérsias
ela entendia qualquer contato, de qualquer espécie, com qualquer pessoa.
Tentou se instalar dentro da banheira
seca para tomar o chá, imaginou no fim da tarde os pingos companheiros e
cantarolou uma música apreciando o eco que ali fazia. Depois viu que não
precisava de música.
Tentou de tudo, ficou nua e olhou seu
corpo, imaginou que era bonita, forçou ao máximo até chegar em um prazer mísero
que a fizesse lembrar da entrega ao mundo impenetrável sobre o qual ninguém
jamais saberia e que nunca precisaria dividir. O mergulho era, portanto, como a
liberdade, era como ter segredos a mais, como criar, como se inventar. Sem o
prazer das águas ela estava enredada no universo das repetições. Tinha de ficar
perambulando, o dia sem quebras de acontecimentos relevantes dividindo o tempo,
dando sentido às horas de sobra ao redor.
Então resolveu fingir que não sabia de
nada. Abriu as torneiras, encheu a banheira e se recostou para apreciar a
madrugada de uma noite em que não podia dormir. Fez isso continuadamente, certa
de que nada aconteceria, afinal, o que uma mancha no teto poderia denunciar era
mínimo. Se enganou.
Passou pouco tempo até que tocassem a
campainha. A mulher abriu a porta assustada, não se relacionava com os
moradores do prédio. O vizinho disse saber do uso da hidromassagem, porque além
de ouvir o barulho da água, a mancha estava ficando mais intensa. O moço
perguntou se o conserto do vazamento seria realizado e ela, tão desprevenida e
sem malícia, disse a verdade, disse não ter dinheiro esperando talvez
compreensão. Percebeu que ele não podia crer em tanta simplicidade para
comunicar o voluntário agravamento de um problema como aquele, e que a tratou como
alguém com certa debilidade. Ela preferiu abstrair esse detalhe sem se ofender,
prometendo não fazer mais nada. Tudo para obter logo o alívio de fechar a porta
e encerrar contato.
Mas nada parou. Chás e imersão,
relaxamento e indiferença. As semanas passavam e ninguém se manifestava. Assim
pensou em tudo finalmente definido, vizinho consciente das suas dificuldades, o
mundo em concordância com o que ela podia fazer.
Mas chega a tarde de surpresa ainda pior
do que o estranho à porta. No chão se via uma poça de água escura, água
brotando de todos os cantos daquelas paredes de folhagens tão tranquilas. O
líquido quase negro era espesso, tinha aspecto viscoso e começava a exalar
cheiro estranho. Curiosamente passou a achar a banheira um cubículo pequeno
demais. Ela queria sair dali e não conseguia, porque pisar naquele mistério
seria impossível. A campainha e o telefone tocavam ao mesmo tempo, quando então
viu tudo fora de controle.
Venceu a aflição do lodo, vestiu o
primeiro vestido que viu pela frente, e, ainda molhada, abriu a porta. O
telefone explodia, e no corredor do prédio várias pessoas a olhavam indignadas.
Parecia que o vazamento tinha tomado proporções assustadoras, um cano havia se
rompido e a água escura escorria pelas
paredes de vários dos apartamentos. E não era o caso de se explicar, afinal
fora pega no pulo, molhada e recém saída do banho causador da encrenca.
Depois de longos minutos de mal estar,
sem poder se defender, chegou finalmente a hora de se recolher e planejar como
limpar tudo aquilo. A banheira estava cheia, o chão alagado, a sujeira vazando
para o quarto, corredor, tomando a casa.
Ficou sem ação. A campainha tocou
novamente, dessa vez com gente querendo olhar o estrago, oferecendo o que
deveria soar como ajuda, mas que soou muito mais como intromissão. Estavam
todos loucos para ver a casa da reclusa misteriosa.
Ela disse não à expectativa geral, e a
insistência de todo o prédio se juntava à dela mesma em não saber o primeiro
passo para começar a organizar-se.
Até que quis voltar à proteção na hora
em que o barulho das chamadas era um só grito sufocante. Passou dessa vez pela
sujeira já sem nojo, não sentindo nada. E aí percebeu os sons cessando
subitamente. Viu a xícara de chá esperando com o líquido frio, o próprio tanque
todo frio. Como poderia ter se esquecido? Entrou novamente no banho, suspirou
relaxada e abriu as torneiras todas. Viu a água transbordando, o calor
voltando, e não ligou. Continuou bebendo tranquila, até que ouviu o estrondo
vindo da sala e atinou na hora que era a porta sendo arrombada. O máximo que conseguiu
foi no ímpeto do desagrado atirar a xícara na parede, mas logo retomou a
calmaria.
O homem da manutenção apareceu e a
encontrou inerte, olhar fixo para os azulejos. Constrangido, chamou várias
vezes, mas não ouviu resposta.
Nesse dia, durante toda a tarde, o
apartamento foi visitado pelo edifício inteiro, o recôndito sendo espiado por
cada morador, todos em fila indiana no corredor dos quartos, muita organização
e atenção para a apreciação da exposição. Ela era parte de inédita instalação
que atraía expectadores sedentos e curiosos com o que essa mulher tão calada
pode ter de mais secreto.
Os olhares eram cheios de
significados, mas ela escolhia não encarar para não ter de classificar. Sabia
só da pura e insensível curiosidade, morbidez exposta ali como socialmente
aceitável, tentação de invadir e deixar escancarado que viver em reclusão não
poderia ficar por isso mesmo. Nunca. Não neste mundo de gente normal pedindo
relações, exigindo que sejamos todos razoáveis na boa vontade de participar.
A fila andava vagarosa e a estátua
inerte se fixava nas flores cor de rosa, ainda de alguma forma imbuída de
espírito estóico, sem baixar a cabeça, mas também sem reflexo para se cobrir.
Ela se protegia, mas sabia que o fazia de um jeito incompleto. E de qualquer
forma nada mais contava, a bolha havia sido estourada, o invólucro protetor das
questões mais mundanas rompido para nunca mais voltar a ser o mesmo. Nem que
ganhasse o dinheiro necessário para comprar outra banheira, reformar a casa
toda, e nem se com isso ela ganhasse mais conforto. Agora era mesmo tudo pelo
chão, junto com a água preta.
A vida ali já não era nada. O que lhe
parecia ser o acabado de antes se tornava aos poucos o oposto da não vida
deflagrada nesse dia, resultado do contato brusco com a desenfreada falta de
comedimento do universo. Há nove meses ela quis dar seu último basta e agora
via o nascimento da monstruosidade tão temida. Atirar aquele objeto na parede ilustrava
o que já podia suspeitar de todo o esgotamento, passageiro freqüente nos dias,
e então tal sentimento assumia outra importância nessa hora.
Só quando escureceu a visitação parou.
No anoitecer saiu enfim do encantamento sobre o qual não havia mais nada que
pretendesse compreender. Conseguiu levantar, deixar o poço gelado e alcançar a
toalha, enrolar o corpo que já havia sido parte das coisas que guardaria do
mundo. Cobriu-se mesmo sabendo que nunca mais deixaria de estar exposta.
Suspirou sem sentimentos, e como se fosse nada, colheu os cacos da xícara
quebrada há horas. Seus cabelos voaram sobre o rosto, e como gesto natural
fechou a janela deixada aberta. Era tudo inútil, já que sabia que nunca mais
pararia de sentir o frio.
A
água no chão permanecia. Escura, difícil, errada. Mas a água estava ao menos
silenciosa.